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No interior de Rondônia, pontas soltas na ex-floresta – Rede Brasil Atual

Massacre de sem-terra ocorrido há 18 anos em Corumbiára está longe de desfecho: famílias sem indenização, pedido de anistia a condenados e mortes se repetem no campo
Publicado 20/10/2013 – 12h13
Antiga Fazenda Santa Elina: 20 mil hectares ocupados por 532 famílias em julho/1995 parlamentares ruralistas e jagunços
Aqui escorreu sangue. Não carece de assustar porque faz tempo, já lavou. Hoje é mato até a cintura, picando as mãos, ajudando a esquecer. Vai ter uma capela para lembrar dos mortos tudinho. Estavam aqui, debaixo da sola dos pés, onde o mato não deixa ver. José Carlos Leite Ferreira, o Carlim, cismou de não apagar da memória. “Eles atacaram por aqui”, aponta para a direita, e parece enxergar os policiais vindo em sua direção.“De madrugada escutava uns cain­do, outros subindo nos galhos. Começou o tiroteio. Só ouvia ‘pelo amor de Deus’, ‘não quero morrer’.” Morreram nove sem-terra e dois policiais. O massacre de Corumbiara (RO), em 9 de agosto de 1995, no interior do interior do Brasil, tem muitas pontas soltas: engana-se quem acha que é passado.
Em 2012, o Pará foi desbancado do topo da honrosa lista elaborada pela Comissão Pastoral da Terra sobre mortes no campo. Com oito assassinatos a seis, Rondônia deixou a pecha de eterno vice. Criado em 1982, o estado é o novo oeste do Brasil, com cenas dignas de um velho e selvagem oeste dos Estados Unidos. Há muito os militares cresciam os olhos para aquela imensidão, por achar que indígenas e ribeirinhos deveriam ceder espaço a boi e plantio. Estradas para o norte, para o oeste, incentivos fiscais. Tanta tensão social no Rio e em São Paulo, tanta seca no Nordeste, tanta gente sem terra no Sul. Na década de 1970, Rondônia era uma frente de oportunidades: legais e morais, ilegais e imorais.
A BR-364, de Porto Velho a Cuiabá, virou a espinha dorsal de uma região de rios caudalosos. A 100 quilômetros para cada lado dela as terras deveriam ser destinadas à reforma agrária. Nos anos 1970, 24 mil famílias foram assentadas, mas a população explodiu de 70 mil habitantes em 1960 para 491 mil em 1980. Na mesma década, 500 mil hectares de propriedades foram licitados ou doados a empresas ou grandes fazendeiros do Sul e do Sudeste. À medida que havia mais gente à espera de terra e o processo se tornava mais lento, a violência se intensificava. Vieram tempos de enfrentamentos entre jagunços e posseiros.
Foi nesse cenário que em 1995 um grupo de amigos de Corumbiara, no extremo sul, soube que a Fazenda Santa Elina e seus quase 20 mil hectares poderiam entrar para a reforma agrária. Passando ali para visitar amigos, Cícero Pereira Leite Neto, que havia comandado muitas ocupações, aceitou um convite que mudaria sua vida.
“Olha, eu fico as duas primeiras semanas. Mais que isso não fico.” Mas a carne do rapaz vindo de Pernambuco era fraca para movimento. Chegado na década de 1970, tinha integrado as Comunidades Eclesiais de Base, onde se deu conta de que o ímpeto da juventude casava com a falta de oportunidades para um nordestino pobre. Em julho de 1995, quando a área foi ocupada, a notícia correu a região, por onde os líderes se mobilizavam chamando mais famílias – 532 no total, segundo os registros. Nesse ínterim, policiais eram procurados por funcionários de várias fazendas na área para um bico como “segurança de instalações”, com salário de R$ 800.
No começo daquele agosto, os sem-terra decidiram enviar ao então governador, Valdir Raupp (PMDB), hoje senador, um ofício chamando atenção para o clima tenso. Tarde demais: em 29 de julho, o presidente da Sociedade Rural Brasileira, Roberto Rodrigues, havia endereçado carta ao gabinete de Raupp: “A classe dos produtores rurais espera e confia na ação enérgica e imediata do governo de Vossa Excelência… A violência precisa ser extirpada no início, antes que se expanda como rastilho de pólvora”, cobrou Rodrigues. O homem que seria ministro da Agricultura do primeiro governo Lula trouxe ao papel aquilo que até hoje corre à boca pequena: a preocupação dos fazendeiros era que as ocupações se espalhassem pela região.
Em 1º de agosto, o juiz Glodner Pauletto expediu ofício à Polícia Militar: o mandado de reintegração de posse deveria ser cumprido “IMEDIATAMENTE”. Tropas deslocadas de Porto Velho se somaram às de Vilhena e às de Colorado do Oeste, quase 200 homens. Uma semana após a ordem, o major José Ventura Pereira, que deveria comandar a operação, reuniu-se com os sem-terra, enquanto os colegas armavam acampamento em frente ao assentamento vizinho. Ventura prometeu que voltaria a conversar com o magistrado em busca de uma solução pacífica, o que está registrado em gravação.
Naquela madrugada, porém, os PMs começaram a marchar em direção ao acampamento dos agricultores, numa estratégia mais tarde lembrada pelo responsável pela investigação como “uma máxima estratégica preconizada nos manuais militares para operações de combate, o que evidencia, pelo menos em nível de comando, que a reação era previsível e esperada”. Em juízo, Ventura declarou ter sofrido pressão de Executivo, Judiciário e fazendeiros, os três poderes constitucionais de Rondônia.
Difícil dizer quem começou o tiroteio. Os sem-terra tinham em torno de 40 homens armados, o chamado grupo da segurança. Os sobreviventes dizem que havia pistoleiros do outro lado, e há quem admita que vários deles foram mortos. Guaxeba, ou jagunço, é uma profissão comum em Rondônia, tão comum quanto ter uma arma. Após um longo período de conflito, no começo da manhã os policiais dominaram a situação. Aí têm início abusos, tortura física e psicológica e execuções – pelo menos seis entre as nove mortes oficiais. Na versão dos sem-terra, morreram muito mais trabalhadores do que dizem os números.
O posseiro Sérgio Rodrigues Gomes estava em poder da polícia quando foi retirado do local, com vida, em uma picape. O corpo apareceu boiando no dia 24 em um rio, com marcas de tortura e sinais de execução sumária. Os depoimentos conectam essa morte a um funcionário de Antenor Duarte do Valle, pecuarista de São Paulo que liderava os proprietários da região, fundador da seccional rondoniense da União Democrática Ruralista (UDR).

Ele tem fazendas em vários municípios de Rondônia e de Mato Grosso e alguns processos por desmatamento ilegal. É também um habitué da chamada “lista suja” do trabalho escravo, do Ministério do Trabalho e Emprego, que frequentou regularmente entre 2004 e 2009. Um relatório expedido ao governador no começo de agosto indicava como solução para o problema a destinação provisória de 500 hectares para uma roça comunitária dos posseiros, proposta que não foi vetada por Hélio Pereira de Morais, dono da fazenda, mas por Antenor.
Quando se apresentou para depor, o pecuarista admitiu que esteve na cena do conflito, porque um policial pediu a um peão que “fizesse a gentileza” de ajudar a transportar as tropas. Há relatos, porém, de que Antenor circulou pela base da PM montada durante a operação.
O médico e PM Renato Closs disse que ficou chocado ao chegar ao acampamento e ver a desenvoltura com que civis armados circulavam pela área. Informaram a ele que eram capangas de Antenor, incluindo três policiais, que disseram haver sido contratados para serviços de segurança. Sabe-se que o pecuarista esteve no 3º Batalhão da PM, em Vilhena, dias antes da operação. Lá, conversou com o capitão Vitório Regis Mena Mendes, que comandou as tropas da Santa Elina. O responsável pelo inquérito achou curioso que fossem os fazendeiros os fornecedores de todo o aparato logístico, incluindo alimentação. No começo de setembro, o capitão, que recebia R$ 1.061,14 por mês, comprou um Monza novo no valor de R$ 19.865,00.
Nos meses seguintes ao massacre, o Incra assentou as famílias. Enquanto a maior parte retomava a vida, dois dos sem-terra começavam a sofrer acusações. Para o Ministério Público, Claudemir Gilberto Ramos e Cícero Pereira Leite Neto são responsáveis pela morte dos dois policiais. Na impossibilidade de que se identifique a autoria dos disparos, de acordo com o MP, os que promoveram a ocupação devem pagar pelo crime.
Do lado dos policiais, a situação foi igualmente complexa. Rondônia não contava com órgãos próprios de perícia, muitas das balas encontradas nos corpos não foram submetidas aos exames legais, o controle do uso de munição e armamento
pelos batalhões era frágil e a cena dos fatos havia sido desfeita. “Eu estava com consciência de que tinham me colocado só pra ter mais um. Digo de coração: nunca imaginei que seria condenado”, recorda o soldado Airton Ramos de Morais. “As testemunhas não reconheceram, a balística não deu nada, e peguei 18 anos.”
Enquanto o fazendeiro Antenor Duarte escapou já na fase de instrução do processo, dez PMs e dois sem-terra foram levados a júri popular. O júri foi deslocado para a capital Porto Velho na tentativa de escapar das pressões que ocorreriam no interior. O advogado Alexandre Lopes de Oliveira, que atua no Rio de Janeiro, estava em seu primeiro júri, e foi à capital acompanhado do experiente George Tavares para defender Cícero e Claudemir. “Era um clima horroroso. A cidade estava parada em torno do julgamento. Falava-se na absolvição dos policiais, jogava-se toda a culpa em cima dos camponeses.”
A situação se mostrou complicada logo no primeiro dia, ainda durante o julgamento de PMs, quando o promotor Tarcísio Leite Mattos iniciou os trabalhos com pedido de absolvição dos agentes de segurança, alegando que haviam cumprido ordens. “Ou o Brasil acaba com os sem-terra, ou os sem-terra acabam com o Brasil”, disse.
“Ele estava advogando para os policiais, e não fazendo o papel de Ministério Público. Aí o estrago já estava feito”, lamenta Alexandre. O resultado foi de quatro votos a três pela condenação dos sem-terra, o que, traduzido do juridiquês, demonstra um alto grau de dúvida dos jurados, suficiente para que se convocasse novo julgamento – o que nunca ocorreu, apesar de pedidos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que cobrou ainda uma apuração imparcial, promovida por um órgão que não estivesse envolvido diretamente no episódio. Claudemir recebeu sentença de oito anos e seis meses. Cícero, de seis anos e dois meses. Entre os policiais, os jurados entenderam que eram culpados os soldados Daniel da Silva Furtado e Airton Ramos de Morais, com penas, respectivamente, de 16 e de 18 anos. O capitão Mena Mendes recebeu sentença de 19 anos e meio de reclusão.
Em 2004, quando se esgotaram os recursos, Claudemir passou a uma vida errante. Todos os dias dorme e acorda sem saber se em seguida estará só, preso ou morto. “Estou sofrendo uma prisão psicológica. Já estou cumprindo a pena. Só não me entreguei porque acho injusto.” Em 2011, o deputado João Paulo Cunha (PT-SP) apresentou proposta para anistiar os dois sem-terra. O projeto passou pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), na qual o relator, Vieira da Cunha (PDT-RS), acrescentou o pedido de que sejam anistiados também os policiais, e agora espera pela votação em plenário. Cícero achava já estar livre da condenação, até que em 2007 foi avisado de que deveria se apresentar à Justiça: cumpriu dez meses e oito dias em regime fechado. Os soldados Ramos e Furtado estão em regime aberto, em Vilhena, e Mena Mendes, em Porto Velho. Chegou a perder a patente, mas acabou se aposentando como servidor público.
Paulo César de FigueiredoReconhecimento – O atual comandante da PM de Rondônia é Paulo César de Figueiredo. Em 1999, foi pronunciado réu por nove homicídios de sem-terra, e não chegou a ir júri. Seu colega José Hélio Cysneiros Pachá, julgado e absolvido, foi promovido em 3 de setembro a coronel, assumiu a coordenadoria de policiamento de Porto Velho.
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Quem vai conhecer Rondônia e não pretende se decepcionar precisa deixar para trás o préconceito de uma Amazônia idílica, moldada por divinas mãos, intocada. Boa parte da floresta virou pó (continua virando todos os anos durante a época de queimadas) e outra parte, dinheiro, carvão, construção civil e móveis. Em Corumbiara, dos 190 mil hectares disponíveis para a agricultura, segundo o IBGE, 131 mil eram usados em 2006 para pastagens pelas quais circulavam 214 mil cabeças de gado. De lá para cá, o panorama mudou, visivelmente, com a chegada da soja.
À agricultura se somou nos últimos anos um elemento surreal: torres de energia imensas, do tamanho e da largura de edifícios, brotam do solo. Os fios que saem das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, em Porto Velho, atravessam o estado de ponta a ponta para mandar eletricidade para o Sudeste, passando pela Santa Elina. Os novos moradores, porém, das torres só desfrutam os pilares, onde se sentam para conversar ou comer alguma fruta. Tampouco há água encanada, luxo rondoniense, e as estradas são quase intransitáveis na época da chuva, de outubro a abril, quando as crianças passam semanas sem conseguir ir à escola.
Dora Nilva Mendonça, a Anita, vive vigiada por uma das imponentes estruturas, colocada sobre a colina mais alta do local. Chegou à terra no ano passado, e agora vive em uma casinha de madeira, com um quarto e sala, uma cozinha do lado de fora e um banheiro seco, afastado. Entre 2011 e 2012, o Incra finalmente conseguiu comprar 14 mil hectares daquelas terras para reforma agrária. “Eu acho que o lugar melhor para viver é no campo”, diz, sempre olhando para baixo, num discurso corriqueiro logo deixado para trás para virem à tona as palavras imperialismo, burguesia, resistência. Não é difícil entender que ela integra a Liga dos Camponeses Pobres, grupo à esquerda do MST.
É preciso dirigir 12 quilômetros desde a casa de Anita, por dentro da fazenda, para chegar à antiga sede, que hoje funciona como um centro de reuniões dos assentados pela Liga.
A nova ocupação da Santa Elina, feita pela primeira vez em 2008 e retomada dois anos mais tarde, foi fruto da soma de insatisfação com a demora de que se pague indenização às vítimas do massacre, novas famílias à espera de terras e disputa entre movimentos. A Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia, um grupo antipartidário rompido com os líderes do movimento de 1995, passou a disputar a herança do episódio. Parte dessa estratégia foi rebatizá-lo como Batalha de Corumbiara, uma maneira de enaltecer a resistência dos trabalhadores, e promover a “revolução agrária”, em que se definem o tamanho dos lotes e a distribuição sem a participação do Incra.
Camponeses ligados à Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Rondônia (Fetagro)­ e ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Corumbiara também reforçaram a pressão sobre o Incra pela demarcação das terras. De um lado, o relato é de que a outra entidade colocou na lista para assentamento famílias que nada têm a ver com a questão rural, acusação repetida de maneira idêntica do outro lado. “O conflito em Santa Elina foi um divisor de águas no movimento camponês, uma ruptura entre as lideranças oportunistas que defendem a reforma agrária do governo e as lideranças combativas que romperam as ilusões com o processo eleitoral”, diz o líder da Liga, identificado como Zé Gonçalves.
A divisão entre movimentos é fácil de notar também no longo processo de indenização das vítimas. Ninguém sabe explicar o emaranhado de ações judiciais e negociações paralelas em torno do tema, e é impossível vislumbrar o horizonte em que entidades que pensam de maneira tão diferente e disputam um mesmo espaço cheguem a um acordo. Um pequeno grupo de famílias esteve perto de arrancar do governo estadual um benefício de um salário mínimo por mês, mas a entrada de mais pessoas fez a gestão de Ivo Cassol (PP, 2003-2010) recuar, com o argumento de que não havia caixa suficiente. Recentemente foi realizada uma audiência na Assembleia Legislativa, mas o governador Confúcio Moura (PMDB) não enviou representantes.

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