O engenheiro de software Carlos Rapelli, nascido em Presidente Venceslau (SP), tem as viagens como um grande hobby e já conheceu vários destinos em todo o mundo: China, Itália, Índia, Tailândia… Mas algumas das suas maiores lembranças e aprendizagens estão na última visita ao continente africano. E, por caso, essa viagem não foi a lazer.
Ainda no final de 2019, o venceslauense de 55 anos de idade embarcou rumo ao Quênia para ministrar um curso de robótica para 10 alunos, fruto de um projeto-piloto até então. Tudo foi custeado por ele mesmo.
Na oportunidade, ele pôde conhecer e conviver com diversos alunos cujos familiares estiveram em meio aos conflitos que caracterizam a localidade. E, mesmo que ele já tenha visitado a África antes, tudo foi bastante impactante.
“Durante o curso, eu pude conhecer mais um pouco da história de vida dos alunos. Alguns são de família de refugiados do Sudão e de Ruanda. São pessoas que fugiram da guerra, do genocídio e da perseguição simplesmente por praticar uma religião ou pertencer a um determinado grupo étnico”, comenta .
No entanto, pouco depois outro problema surgiu: a fome. Muitos alunos não saíam da sala na hora do almoço para comer, simplesmente porque não tinham refeição, e a rotina era bem intensa. As aulas eram ministradas das 9h às 16h. “Todos os dias pela manhã eu ia a pé para o curso. Eu comprava as bananas, o mungazi, que é um tipo de pão frito, o almoço e os snacks para eles. Foi ótimo! Eles passaram a comer antes e durante o curso”, lembra.
Por isso, para criar um clima mais leve nas aulas e deixar os problemas de lado, o jeito foi se adaptar à língua e aos costumes.

“No Quênia, eu sou muzungu (homem branco) e as pessoas na rua me chamavam assim. Eu aprendi algumas frases em suaíle e em kikuyu, então, às vezes eu os respondia em swahili e eles ficavam sem entender como um muzungu tinha aprendido aquilo. Isso criava um clima engraçado e leve. Todos meus alunos me diziam que o fato de eu sair do meu país e ir lá passar este conhecimento até então inacessível para eles era algo gratificante e eles me admiravam por isso. E gratidão era a palavra que eu mais ouvia”, recorda.
Outros pontos que chamaram bastante a atenção do venceslauense foram a simplicidade dos africanos e a vontade deles de vencer os desafios cotidianos. Segundo Rapelli, é um povo que se assemelha muito aos brasileiros.
“Andei pelo interior do Quênia, tanto por regiões secas e pobres (dentro do nosso conceito de pobreza) quanto por outras mais prósperas. Para mim, o queniano tem muita garra, força de vontade e é um lutador pela sobrevivência tanto nos campos quanto nas cidades. Em geral, é um povo pacífico e fácil de fazer amizade. Vejo neles um senso de empreendedorismo e uma dinâmica enorme”, conta.

‘Pura paixão’
Criado há pouco mais de dois anos, o projeto consiste em ensinar automação e robótica para alunos do ensino médio em várias partes do mundo. No final das aulas, os alunos são desafiados a desenvolver uma solução tecnológica para algum problema do cotidiano.
“O projeto é tocado por pura paixão em poder passar um pouco do meu conhecimento que tenho na área de tecnologia para jovens de nível secundário, principalmente para aqueles que têm potencial e vontade, mas, por um motivo ou outro, ainda não têm acesso a esse tipo e nível de conteúdo ou às vezes não têm a visão definida de onde podem ou querem chegar. Eu procuro dar este curso para alunos de escola pública, porque em geral são mais carentes e teriam mais dificuldade de acesso a esse tipo de conteúdo. Porém, existe uma triagem feita pela escola, levando em conta a situação de carência e o perfil intelectual e de interesse do aluno na área”, explica.
“O resultado foi surpreendente e estou tentando organizar outros cursos lá na África para esse ano ou para o próximo. A intenção agora é usar o resultado deste curso-piloto e programarmos mais alguns para dar continuidade e treinar novos alunos no Quênia para que eles possam futuramente tocar esse projeto sozinhos dentro de algum tempo lá. Ao mesmo tempo, vou tentar expandir para Uganda e África do Sul, e Turquia, onde já tenho contatos. Também para a Índia, onde estive a trabalho no ano passado e devo voltar agora em março a trabalho novamente”, ressalta.

“O meu intuito é transformar esse projeto em uma ONG [Organização Não-governamental], de modo a poder receber fundos de doações de empresas, instituições e pessoas físicas continuamente para eu poder treinar outros professores voluntários em diferentes regiões do Brasil e do mundo”, acrescenta.
A primeira edição do curso foi ministrada na Escola Técnica Estadual (Etec) Professor Milton Gazzetti, de Presidente Venceslau, e já em abril há uma turma agendada no Brasil.

Vida gringa
Nascido em Presidente Venceslau, Carlos Rapelli morou no Oeste Paulista até os 18 anos de idade, quando resolveu deixar a cidade e estudar fora. Ele mora nos Estados Unidos da América há 25 anos e atualmente vive em Georgetown, no Estado do Texas – também já morou em Washington, Nova Iorque, Atlanta e Austin.
Como ele mesmo relata, são vários os desafios quando se resolve morar em outro país, seja grande ou pequeno, mas o idioma foi o que mais lhe dificultou no início.
“Tudo começa com a língua. Eu sempre acreditei e, pela minha experiência em observar outros imigrantes neste país, eu diria que você começa a se adaptar depois que a barreira da língua é quebrada. Muitos resistem em aprender a língua e ficam longo tempo vivendo em nichos, o que dificulta ainda mais a sua interação com a sociedade local”, enfatiza.
O venceslauense é formado em física pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro (SP) e tem mestrado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), na área de meteorologia. Mas, hoje, atua na área de desenvolvimento de soluções tecnológicas voltadas para o setor de ferrovias.
“A minha carreira inicial era na área de meteorologia, do clima. Eu trabalhei mais de 20 anos com pesquisa e desenvolvimento na área de modelagem climática. Esta indústria americana está passando por uma transformação tecnológica imensa”, pontua.

Futuro em aberto
Mesmo que o idioma e os costumes tenham sido uma barreira no começo da vida no exterior, a comida e o reconhecimento aos brasileiros foram uma grande surpresa para Rapelli.
“No Texas, eu como arroz e feijão quase todos os dias. Aliás, arroz e feijão são bem comuns aqui. E todos admiram o Brasil. No Egito, principalmente, mostrar o passaporte brasileiro me ajudava muito”, relembra.
Desta forma, voltar para o país de origem é uma possibilidade não muito cogitada no momento. O venceslauense conta que está acostumado com o seu atual país e deixa o assunto ainda em aberto.
“Eu vivi quase metade da minha vida aqui e sou extremamente adaptado ao sistema americano de trabalho, convivência, rotina etc.. Gosto muito do Brasil, gostaria de voltar um dia, mas tenho dúvidas, porque a realidade no Brasil é outra e tenho medo de não me adaptar a alguns costumes. Porém, toda mudança traz desafios. Na verdade, como gosto muito de viajar, penso em passar algum tempo morando em várias partes do mundo e ficar sempre com um pé em Presidente Venceslau e o outro no Texas”, encerra.

Fonte: G1