[Tendo em vista (i) o impacto dos acontecimentos recentes na França e (ii) a profundidade da análise feita por Theodore Dalrymple, peço licença a vocês, leitores, para usar o espaço da coluna para replicar texto que o Dalrymple publicou esta semana no City Journal. Texto que traduzo e republico com autorização da revista americana.]
Falsa piedade
Theodore Dalrymple
29 de outubro de 2020
Ataques terroristas, como problemas, raramente acontecem isoladamente. Eles estão sujeitos à sua própria versão do efeito Werther*, assim chamado em homenagem ao herói do romance de Goethe, que se matou por amor não correspondido, à publicação seguiu-se uma onda de suicídios de jovens românticos.
Na noite anterior à última ofensiva violenta islâmica na França, na qual um terrorista matou três pessoas na Basílica de Notre-Dame de Nice, eu estava lendo um pequeno livro sobre o terrorismo islâmico na Europa, preparando-me para escrever um artigo sobre a decapitação (por um checheno refugiado) de Samuel Paty, o professor que havia usado cartuns de Maomé em sua aula de cívica para ensinar sobre liberdade de expressão, há duas semanas.
O livro era de Hamid Zanaz. O autor é de origem argelina, um filósofo que não apenas abandonou sua religião ancestral, mas agora se opõe a ela em todas as suas formas. Seu livro relata uma história que explica longamente como o islamismo foi capaz de penetrar, quase sem oposição, no tecido da Europa. A história se refere à Noruega, mas algo semelhante pode ser contado sobre muitos, senão sobre todos, os países da Europa Ocidental. Cito na íntegra:
Karsten Nordal Hauken, um político estuprado por um somali [refugiado na Noruega], se opôs à deportação de seu agressor: “Perdi anos devido à depressão e à maconha. . . . Aprendi que a cultura de origem do estuprador é completamente diferente da nossa. Em sua cultura, o abuso sexual é antes de tudo uma questão de tomada de poder e não o resultado do desejo sexual: não é considerado um ato homossexual. Para entender como isso pode ocorrer, é preciso superar seus preconceitos…
Ele continua:
“Não sinto raiva do meu agressor, porque o vejo mais como produto de um mundo injusto. O produto de uma educação marcada por guerras e privações. . . . Quero que continuemos a ajudar os refugiados, apesar desse contexto. . . . Antes de ser um norueguês, eu sou um ser humano. Não, eu faço parte do mundo e, infelizmente, o mundo é injusto.”
Em outras palavras, foi realmente por sua culpa [Hauken], como habitante de um país injustamente privilegiado, que o somali o estuprou. Ele teve o que mereceu: assim como, pela mesma lógica, a mulher da Basílica de Notre-Dame de Nice mereceu sua decapitação.
Versões dessa peculiar visão moral (estado de espírito) são comuns na Europa (e provavelmente na América também), especialmente entre a intelectualidade. Desnecessário dizer que este é um estado de espírito que dificilmente estaria apto para se opor a uma ideologia perversa e perigosa. Para entender a mentalidade, dois textos vêm à mente: um de G.K. Chesterton e um de Max Frisch.
Em Ortodoxia, Chesterton escreveu que o mundo moderno “está cheio de virtudes selvagens e perdidas”. Ele segue:
Quando um esquema religioso é destruído. . . não são apenas os vícios que são afrouxados. Os vícios são, de fato, liberados e vagam e causam danos. Mas as virtudes também são liberadas; e as virtudes vagam mais descontroladamente, e as virtudes causam danos mais terríveis. . . . alguns humanitários preocupam-se apenas com a piedade; e sua piedade (lamento dizer) muitas vezes é falsa.
Que maneira mais enérgica de caracterizar o estado de espírito egotista (egocêntrico, autocentrado) de Hauken do que falsa piedade? E que dano terrível sua falsa piedade, ou algo parecido, fez.
O segundo texto, da grande peça de Max Frisch “The Fire Raisers”, captura a covardia absoluta do estado de espírito de Nordal Hauken e de muitos como ele. Na peça, um empresário chamado Biedermann admite um pobre incendiário itinerante em sua casa, em parte por caridade e em parte por uma incapacidade pusilânime de dizer não (é difícil separar os dois). O incendiário dá indicações cada vez mais claras de que pretende incendiar a casa, mas Biedermann, novamente em parte por cegueira e constrangimento social, mas principalmente por covardia, se recusa a reconhecer o fato e expulsar o incendiário. Esse último incendeia a casa, matando Biedermann e sua esposa, que então vão para o inferno.
A peça de Frisch, publicada em 1953, é uma alegoria da tomada de sociedades pelos totalitarismos nazista e comunista, mas é de aplicação muito mais ampla para qualquer sociedade ou organização que enfrenta a destruição por aqueles que se insinuam nela com a intenção ou desejo de destruí-la.
Obviamente, nenhum dos textos fornece orientações precisas sobre quais medidas práticas a França e outros países em situação semelhante devem tomar.
Theodore Dalrymple é editor-colaborador do City Journal, associado sênior no Manhattan Institute, e o autor de muitos livros, incluindo Out into the Beautiful World e Grief and Other Stories. Ele é um psiquiatra aposentado que, mais recentemente, trabalhou em um hospital e em uma prisão britânicos no centro de Londres.
Copyright (c) 2020 City Journal & Theodore Dalrymple; traduzido para o português por Marcos Pena Jr sob permissão do City Journal. Todos os direitos reservados. Este produto é protegido por direitos autorais e distribuído sob licenças que restringem a cópia, a distribuição e a descompilação.
Foto de Arnold Jerocki /Getty Images
* [Nota do tradutor] O efeito Werther foi proposto em 1974 por David Phillips (pesquisador dos Estados Unidos) para definir a situação em que acontece aumento expressivo no número de casos de suicídio na sequência de ampla divulgação da ocorrência de um específico.
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